Por Seilla Carvalho
"O enigma de nossa vida - de todos e de cada um - em sua relação por meio de nosso corpo com o corpo dos outros e por meio da linguagem com os outros sujeitos, através das mediações das coisas mais substanciais chegando até os mais sutis olhares e sons, este enigma subsiste. Imagem do corpo entrecruzado em cada microssegundo com o esquema corporal, substrato de nosso ser no mundo, nexo dos sujeitos com seu corpo em sua substancialidade palpitante, lugar de seu aparecer: assim pode chamar-se também ao desejo inconsciente"
"O enigma de nossa vida - de todos e de cada um - em sua relação por meio de nosso corpo com o corpo dos outros e por meio da linguagem com os outros sujeitos, através das mediações das coisas mais substanciais chegando até os mais sutis olhares e sons, este enigma subsiste. Imagem do corpo entrecruzado em cada microssegundo com o esquema corporal, substrato de nosso ser no mundo, nexo dos sujeitos com seu corpo em sua substancialidade palpitante, lugar de seu aparecer: assim pode chamar-se também ao desejo inconsciente"
(Françoise Dolto)
Para Jacques Lacan (1901-1981), o ser humano não é livre, é um ser garantido pelo simbólico. O sujeito não é causa de si, esse é determinado pelo Outro, que preexiste, que o aliena, e é em torno desse “outro” que o sujeito constitui suas fantasias. Nascemos imersos num universo de símbolos e imagens, representações essas que equivalem aos desejos ide
alizados pelos primeiros cuidadores – mãe/pai. O organismo virgem é exposto ao outro que demanda e que projeta um futuro para esse filho/a, cujo olhar é um espelho que cristaliza e reflete uma imagem forjada à revelia desse ser.
Ser espelhado e espelhar o outro pode se constituir num processo que compreende algumas características do desenvolvimento da sexualidade. Ocorre possivelmente numa dinâmica que perpassa todo o desenvolvimento da pessoa, num trajeto que se inicia nos primeiros anos de vida, passando pela puberdade e adolescência, quando o corpo e os genitais se estabelecem definitivamente até a fase da terceira idade ou melhor idade, quando além das transformações físicas e psicológicas também se modifica a forma de relacionamento sexual.
Na concepção de Lacan temos a teoria do lalíngua, que se trata da língua do inconsciente, ou seja, uma entidade que está em movimento e que escapa ao sujeito da própria língua. O corpo psicanalítico é o corpo atravessado pela linguagem e este não é o corpo biológico. Pois, quando alguém se expressa em sua eloqüência, através da fala, este pretende se fazer entender e de repente, tropeça e troca a palavra ou utiliza uma outra expressão que à princípio não se encaixa no discurso. O falante, em sua razão, se depara com um lapso da língua, uma palavra que pode provocar sentimentos avessos naquele que escuta e naquele que fala. Eis o inconsciente em ação, e o falante não se reconhece naquela palavra inadmissível, que acabou de ser ouvida. A fala do sujeito aponta para sentidos múltiplos e algumas vezes desconhecidos surpreendendo “quem diz algo” e também aquele que “está na escuta”.
O inconsciente se manifesta de diversas formas, numa frase que se interrompe, numa palavra que pode causar perplexidade, num nome que quando falado é substituído por outro, num relato de sonho, ou seja, nas inúmeras vertentes de sua manifestação. O sujeito, inconsciente, não tem idéia do que é revelado e nem tem o domínio do que diz, pelo contrário, é nesse exercício de liberação da fala, da palavra, que ele poderá se deparar com os efeitos que ele mesmo produz “sem querer”.
De certo, o inconsciente produz um novo tipo de saber, um saber constituído pela própria singularidade e que se expressa unicamente ao levantar questionamentos diante das certezas próprias do eu. Ao considerar a realidade psíquica da criança e ao atentar na escuta da fala desse ser nos deparamos com pistas, marcas impressas no eu, deixadas pela fala e concepções dos adultos. O modo como a criança foi olhada, percebida pelos adultos e a maneira como ela reage a isso, vai construindo o seu olhar sobre si, marcando sua história pessoal, e sua busca interna diante do que é externo.
A perda de senso de identidade tem suas raízes na situação familiar. Sendo educado conforme as imagens do sucesso, popularidade, encanto sexual, sofisticação intelectual e cultural, status, auto-sacrifício, e assim por diante, o indivíduo enxerga os outros como imagens, em vez de encará-los como pessoas. Cercado de imagens, ele se sente isolado. Se reage às imagens sente-se alienado [...]. A imagem é uma concepção mental que, superposta ao ser físico, reduz a existência corporal a um papel secundário. O corpo se transforma num instrumento da vontade a serviço da imagem. O indivíduo fica então alienado da realidade de seu corpo (LOWEN,1979, p.18).
A partir do pressuposto psicanalítico, a criança “se vê” através dos olhos do outro e vive uma história a três: a imagem refletida, o sujeito em questão e o olhar de um terceiro. Nesse paradoxo, a linguagem provê ao sujeito um nome e o sujeito prende-se a esse elemento (o nome) para salvar-se da dispersão, a criança repete: “eu sou Lara”. Nessa articulação “Lara” perderá seu ser; “Lara” é o eu (que lhe foi conferido), mas não é Lara (aquele ser que constitui a si mesmo). Esse inconsciente fala, produz sentido, mas sempre escapa, pois não pode ser apreendido em sua totalidade.
Sendo assim, em detrimento do interjogo produzido pelas/nas instâncias do inconsciente o sujeito, ao longo de sua constituição precisa captar, perceber as nuances da própria identidade caso não deseje ser esmagado pela simbologia daquilo que lhe é oferecido como “a realidade”. E essa identidade perpassa pela interação do indivíduo com o meio circundante, pois que a realidade corpórea, seus sentimentos e energias, necessitam ser qualificados pelo ser que “sente e pensa” esse corpo.
Nas primeiras fases do desenvolvimento psicossexual, a masturbação é um instrumento importantíssimo, pois através dela a criança elabora seu aprendizado inicial ao se relacionar com o próprio corpo, adentra o mundo das sensações prazerosas e fica se conhecendo sexualmente. Às vezes, isso acaba por se contrapor com a moral da família que tem seus princípios pautados nos dogmas da religião cristã, gerando conflitos e inúmeras contradições. A fase do reconhecimento do eu sexual ocorre junto com a fase do reconhecimento do tu sexual. À medida que vou me percebendo, me conhecendo, vou me enxergando como sou. Olho-me no espelho de mim mesmo, mas os outros também me servem de espelho, pois me comparo e descubro semelhanças e diferenças. Conhecer o outro serve para conhecê-lo e para me conhecer.
Então a criança descobre diferenças mais definitivas entre as pessoas e se situa numa delas, não só quanto às características anatômicas e fisiológicas, mas quanto aos costumes e hábitos que a sociedade e a cultura determinam para cada sexo. Uma criança cheia de curiosidade quer saber tudo de todas as coisas e também de sexo. Daí as brincadeiras homo e heterossexuais. Brincar com o outro, seu igual, significa quase brincar consigo mesmo. Portanto, o reconhecimento do eu sexual é uma fase homossexual natural e normal. Ficar fixado nessa fase pode ser a raiz de uma homossexualidade adulta e uma passagem segura por ela representa tranqüilidade no papel sexual adulto.
Ao transpor a fase do reconhecimento de si mesma e do outro, a criança percebe que pertence a um sexo e que existem pessoas de outro sexo. Que uns têm pênis e outros tem vagina e várias outras características sexuais próprias. E a cada sexo corresponde uma série de comportamentos e no reconhecimento do outro fazem parte brincadeiras de médico, de marido e mulher etc. Em sua segunda manifestação, na adolescência, esta fase determina um interesse, bem definido, pelo sexo oposto, seja através de fantasias estimuladas por filmes, revistas ou livros, seja pelos toques e namoros que desembocam na primeira relação sexual.
Segundo a visão psicanalítica, o primeiro tu sexual costuma ser o pai do sexo oposto da criança. Assim, o menino internaliza um modelo a partir da relação com a mãe. Essa internalização é uma referência importantíssima na escolha dos futuros companheiros sexuais, a qual pode tender a reencontrar a figura internalizada ou, no outro extremo, a procurar alguém com características opostas. Em outras palavras, o critério consciente-inconsciente com que se escolhe o companheiro fatalmente passa pelo próprio pai ou pela própria mãe.
A próxima fase da evolução sexual consiste nos processos miméticos, ou seja, através da imitação e a vivência de papéis do outro/com o outro que se dá sobretudo no terreno da fantasia, quando a criança imagina situações ou quando ela simboliza na ação, representando o real, como treinamento para ações futuras. A partir daí, o estágio seguinte é chamado por alguns psicanalistas de triangulação, ou seja, quando precocemente a criança se compara com a outra do mesmo sexo. Mais tarde ela compete com o adulto do mesmo sexo para ganhar o outro adulto; a menina “compete” com a mãe para “ganhar” o pai, o menino “compete” com o pai para “ganhar” a mãe. Esta competição consubstancia a tragédia de Édipo, descrita por Freud.
Na adolescência, são os modelos que a sociedade, que a cultura apresentam que o jovem ou a jovem querem igualar ou ultrapassar. Do ponto de vista sexual a triangulação pode gerar uma situação curiosa quando o “eu” está na cama com seu “tu” e o “ele” imaginário está sempre rondando. Isso significa em linhas gerais, a estruturação de três atividades psíquicas: ter prazer, proporcionar prazer e vencer o imaginário competidor sexual.
Esse processo quando mal resolvido pode gerar a necessidade de auto-afirmação, conflitos, inseguranças com relação à vivência sexual e a maturidade psicossexual. Essa maturidade implica numa inversão equilibrada de papéis, ou seja, ser homem e ser mulher, dar e receber, ser ativo e passivo, masculino e feminino num movimento que reconhece a totalidade do ser e a busca pela plenitude do encontro do eu e do eu-tu.
Referenciais Bibliográficos:
BASTOS, Alice Beatriz. A construção da pessoa em Wallon e a construção do sujeito em Lacan. Petrópolis: Vozes, 2003.
BECKER, Daniel. O que é adolescência. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais das crianças, 1908. Rio de Janeiro: Imago, 1980 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud), vol. IX.
_____________. Além do princípio do prazer, 1920. Rio de Janeiro: Imago, 1980 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud), vol. XVIII.
LOWEN, Alexandre. O corpo traído. São Paulo: Summus, 1979.